24.03.2012

Igreja de N. S.ª da Guia, 24 mar. às 21h30
Inserido na abertura da Açores Temporada de Música 2012, promovida pelo Governo Regional dos Açores, através da Direção Regional da Cultura.

Órgão Histórico
Museu de Angra do Heroísmo.
Catálogo

Programa : Recital de Órgão
Angra do Heroísmo, Igreja do Convento de São Francisco, 23 de Março de 2012

Anónimo (Espanha, séc XVII)
Cuatro piezas de clarines

Diogo da Conceição (Portugal, séc. XVII)
Meio registo de 2º tom

Fr. Domingos de S. José (Portugal, séc. XVII)
Obra de 5º tom

Francisco Correa de Arauxo (Espanha, 1584-1654)
Glosas sobre el canto llano de la Inmaculada Concepción

Dietrich Buxtehude (Alemanha, 1637-1707)
Coral Jesus Christus, unser Heiland

Joan Cabanilles (Espanha, 1644-1712)
Corrente italiana

Georg Böhm (Alemanha, 1661-1733)
Partita sobre Jesu du bist allzu schöne

Carlos Seixas (Portugal, 1704-1742)
Sonata em dó menor
[Moderato in tempo di siciliano]
Minuet

Sonata para órgão em lá menor

Johann Sebastian Bach (Alemanha, 1685-1750)
Prelúdio de coral Wer nur den lieben Gott laesst walten BWV 691
Prelúdio de coral Wer nur den lieben Gott laesst walten BWV 690

Giuseppe Antonio Paganelli (Itália, 1710-1783)
Aria II
Aria XXII

Marcos Portugal (1762-1830)
Sonata para órgão em Ré maior

João Vaz, órgão


Angra do Heroísmo, Igreja do Convento de São Francisco, 24 de Março de 2012

Notas à margem

A riqueza do património organístico dos Açores reside não só na sua dimensão (mais de meia centena de órgãos históricos distribuídos pela área relativamente reduzida do arquipélago), mas sobretudo no facto de grande parte destes instrumentos ter chegado aos nossos dias no estado original. A quase ausência de actividade organeira nos Açores (e de forma geral em Portugal) ao longo da segunda metade do século XIX e primeira metade do século XX teve o efeito benéfico de evitar transformações nos instrumentos mais antigos. Para além disto, ao longo das últimas duas décadas, tem-se vindo a desenvolver um esforço continuado de recuperação e valorização do património organístico, o qual se consubstancia, no caso açoriano, em mais de duas dezenas de restauros de elevada qualidade.

De todos os instrumentos musicais, o órgão é o instrumento que mais reflecte – tanto no plano sonoro como no visual – o local e a época em que foi concebido. Os instrumentos construídos ao longo dos séculos nas diversas regiões da Europa apresentam acentuadas diferenças entre si, evidenciando caraterísticas individualizantes segundo a época e o lugar da sua origem. São estas características que deram origem a expressões como «órgão renascentista italiano», «órgão barroco norte-alemão», «órgão romântico francês», entre outras.

O instrumento cujo restauro hoje se inaugura foi construído por António Xavier Machado e Cerveira em 1788 e constitui um exemplar típico do órgão português tardo-setecentista. Ao longo da sua vida, Machado e Cerveira construiu mais de uma centena de instrumentos, contribuindo, ao lado de outros organeiros portugueses seus contemporâneos, para a definição e difusão de um tipo de órgão único no panorama europeu (incluindo Espanha), particularmente adaptado à música sacra que se praticava em Portugal no seu tempo.

O presente recital procura, em primeiro lugar, pôr em evidência a riqueza e variedade tímbricas deste instrumento. Por exemplo, as Quatro peças de clarins, que abrem o recital, exploram, como o seu título denuncia, a sonoridade penetrante dos tubos de palheta dispostos horizontalmente na fachada do instrumento (uma das características mais marcantes dos órgãos peninsulares seiscentistas e setecentistas). Por outro lado, a Aria XXII do napolitano Giuseppe Paganelli, faz ouvir a sonoridade ondulante do registo de Voz humana (particularidade só encontrada nos órgãos italianos e portugueses do século XVIII). Algumas peças exploram uma outra característica dos órgãos ibéricos: o «teclado partido», assim chamado por ser dividido entre o Dó e o Dó sustenido centrais, correspondendo a cada uma das metades um conjunto independente de registos. Este sistema permite a coexistência de dois timbres diferentes num só manual. Por exemplo, no Meio registo de 2º tom, de Diogo da Conceição, uma linha solística é confiada ao timbre brilhante da Corneta (na mão direita), enquanto que as vozes inferiores se movimentam na região grave do teclado com uma sonoridade mais discreta. Outras obras, como as variações sobre a ária Jesu, du bist allzu schöne do compositor alemão Georg Böhm, apresentam sucessivamente várias sonoridades contrastantes.

Paralelamente a uma pura demonstração das capacidades do instrumento, o programa de hoje permite, através da audição de um repertório escrito ao longo de cerca de dois séculos, uma breve panorâmica da produção organística daquele período na Europa. Os diferentes idiomas, de Francisco Correa de Arauxo a Johann Sebastian Bach, são testemunho da diversidade da cultura organística europeia. Esta viagem pela história da produção organística incide muito particularmente sobre Portugal: à severa estrutura polifónica das obras de compositores seiscentistas como Fr. Domingos de S. José, sucede-se no século XVIII a linguagem cravística e italianizante de Carlos Seixas e, mais tarde, o idioma quasi-operático de Marcos Portugal. O recital termina com a Sonata para órgão deste compositor. Esta obra, com as suas alternâncias entre o Cheio, Clarins e solos de Flauta, foi concebida tendo em mente o tipo de órgão produzido por Machado e Cerveira e, sendo praticamente contemporânea do instrumento da Igreja do Convento de São Francisco, encontra nele um meio de expressão ideal.