Espingarda

Quando, em 1543, os ventos atiraram um junco chinês, onde seguiam os portugueses Fernão Mendes Pinto, António Peixoto e Diogo Zeimoto, para a costa Nipongi, o Japão era um sistema feudal (shogunato) com guerras permanentes entre os senhores feudais ou entre ilhas.
Apesar deste estado de guerra constante que levou a grandes reflexões filosóficas, éticas e tácticas sobre a Arte da Guerra, a pólvora e as armas de fogo eram desconhecidas.
Quano Diogo Zeimoto, com a sua espingarda de mecha, matou 26 marrecas (patos) junto a um paúl, o espanto provocado foi de tal ordem que Nautaquim, o príncipe da Ilha de Tanegashima, acorreu a certificar-se do que lhe contavam, tendo, então, o português morto mais um milhano e três rolas. Tais foram as honras que Nautaquim lhe dedicou, na sequência desta feliz demonstração, que mais não restou a Zeimoto senão oferecer-lhe a espingarda e ensiná-lo a fabricar pólvora.
Não menos espantoso, como conta Fernão Mendes Pinto na sua Peregrinação, foi que, cerca de cinco meses e meio depois, havia já mais de 600 espingardas semelhantes às de Zeimoto e, em 1556, mais de 30 mil.
O impacto da introdução da arma de fogo no Japão foi imenso e teve muitas facetas, quer na guerra quer na organização social nipónica, como unanimemente referem os historiadores japoneses. Porém, o mais evidente foi a unificação do reino japonês pela mão de Oda Nobunaga, um importante terra-tenente e chefe militar da segunda metade do século XVI e dos seus soldados armados de espingardas.
A espingarda que Zeimoto introduziu no Japão era um mosquete de mecha do tipo produzido na Boémia, na transição do século XV para o século XVI. Com funcionamento específico, em que a “serpe” com a mecha inflamada se move de trás para frente, armada manualmente e que cai repentinamente sobre a pólvora por acção de um gatilho (Schnapp-Lunt), era completamente diferente dos mosquetes de mecha orientais ou mesmo dos mosquetes de mecha de Nuremberga ou de Augsburgo, nos quais o cão faz um movimento contínuo de aproximação à pólvora por ação de uma alavanca.
Pelo isolamento cultural e distância geográfica do Japão, este mecanismo, que na Europa evoluiu para os fechos de pederneira, cristalizou na espingarda de mecha japonesa e conservou-se em uso até ao século XIX, o mesmo acontecendo com a configuração e decorações que deram a estas armas uma identidade própria.
Anualmente, no mês de julho, na Ilha de Tanegashima, onde os portugueses desembarcaram com a sua espingarda de mecha e cuja designação é também usada para designar este tipo de arma, realiza-se o festival Teppo Matsuri, a mais importante festividade desta ilha e outras ilhas próximas, onde centenas destas espingardas, originais e réplicas, são disparadas e reencenadas as batalhas do século XVI.
Este exemplar do Museu de Angra do Heroísmo, com a forma característica destas armas, com os habituais mecanismos e guarnições em latão, moderadamente decorado com flores estilizadas muito simples, é datável da 2ª metade do século XIX.